Há pouca coisa em comum entre o homem, Cassius Marcellus Clay Jr, e o mito, Muhammad Ali. Do garoto pobre que, certa vez, teve um copo de água negado em uma loja de Louisville, por ser negro, ao maior boxeador de todos os tempos, Clay passou por muitas transformações antes de se tornar Ali, aos 22 anos. Cassius Clay permaneceu invicto; Muhammad Ali foi derrotado em cinco lutas. Antes de o mito perder pela primeira vez, o homem só foi derrubado em duas ocasiões: em fevereiro de 1962, por Sonny Banks, e em junho de 1963, pelo britânico Henry Cooper, na sua primeira luta em Londres – ele voltaria a enfrentar Banks, na Inglaterra, em maio de 66, bem como Brian London, em agosto do mesmo ano, vencendo ambas por nocaute.

Juntos, Clay e Ali somaram 61 lutas em seu cartel. Foram 56 vitórias (37 nocautes e 19 decisões por pontos) e cinco derrotas (quatro por pontos). Por um capricho do destino, quis a história que justamente o mito sofresse o único nocaute de quase 21 anos de carreira. Ali não implodiu, não “beijou a lona”, como diz o jargão do boxe, mas foi duramente castigado por Larry Holmes, em outubro de 1980, em dez assaltos – a luta estava programada para 15. No final, ficou apoiado nas cordas – na verdade, elas o seguraram – enquanto Holmes variava golpes contra seu rosto e sua linha de cintura.

Aqui, é necessário fazer justiça: Holmes procurou nocautear Ali de uma forma “humana” e isso fica claríssimo quando se assiste a luta, hoje, ouvindo as instruções dos treinadores e observando seu ataque.

O último contragolpe de Ali acontece no final do oitavo round e, a partir daí, tudo o que ele faz é caminhar para trás e tentar se esquivar das investidas de Holmes. Nos dois assaltos que se seguem, o campeão é alvo de mais de uma centena de jabs, diretos e cruzados. Não esboça a menor reação, não pendula, não consegue mais levantar a guarda.

Ele foi um dos meus melhores amigos e, eu, seu sparring mais duro – Holmes ganhava US$ 500 por semana, para treinar com o campeão, entre 1972 e 75. Durante a promoção da luta, ele disse para a imprensa que ia acabar comigo”, lembrou Holmes, em entrevista à “Boxe Insider”, no último final de semana. “No final, eu já não o estava golpeando com 100% de minha força.

Vi que ele estava machucado e nunca me aproveitei disso para ferir meus adversários”.

Contrariando tudo o que já se viu em um ringue, Ali suportou os golpes de Holmes sem dobrar os joelhos e sobreviveu até o final do fatídico décimo assalto. É quando Holmes caminha para seu corner de braços abertos, como quem diz: “ele, simplesmente, não cai”, e o treinador Angelo Dundee comunica o árbitro da desistência do campeão: “Eu estou decidindo. Pare a luta, agora!”, dá para ouvi-lo dizer em meio à gritaria que tomou conta do corner – Ali ainda queria seguir, apoiado por dois outros membros da equipe.

Aquela foi a primeira e única vez em que ele não esteve no centro de ringue, para ouvir a decisão dos juízes.

Ali perdeu por nocaute técnico, mas não se entregou, “caiu de pé” como os heróis, os mártires. “Foi o pior momento de minha carreira como treinador, foi muito doloroso, mas eu não podia deixá-lo prosseguir”, disse Dundee, que trabalhou com Ali durante toda sua trajetória, à ESPN, poucos meses antes de morrer, em 2012. “Em todas as vezes que ele venceu, a vitória foi sua, mas quando perdeu, senti que derrota foi nossa, porque eu não podia abandoná-lo naquela hora”.

Com a vitória, Holmes manteve o título do Conselho Mundial de Boxe (WBC) na categoria peso pesado, que deteve de junho de 1978 a dezembro de 1983, quando se tornou o campeão da Federação Internacional de Boxe (IBF), título que manteve até setembro de 85, até a derrota para Michael Spinks. Em 75 lutas, venceu 69 (44 por nocaute) e perdeu apenas 6 (uma única vez por nocaute, para Tyson). Ele tem 66 anos e vive em Easton, na Pennsylvania.