A história narra seus fatos por ordem cronológica, mas de vez em quando essa sequência é quebrada, isto é, há uma necessidade de contá-la de outra forma. Pode ser de trás para frente, como em filmes já assistidos.

Esse é o caso da atriz Ruth de Souza, que morreu no último dia 28, aos 98 anos, no Hospital Copa D'Or, no Rio de Janeiro. A causa que culminou no falecimento da atriz seria o tratamento de uma pneumonia.

Mas afinal de contas qual seria a importância de Ruth de Souza para a dramaturgia brasileira e para a afirmação étnica? A resposta para esta pergunta estaria em sua dedicação aos palcos e na sua persistência como Mulher e negra.

Ela mesma confidenciou, certa vez, que sua vocação era as artes cênicas. A maior comprovação de tudo isso está na longa carreira de 75 anos.

Quando jovem, Ruth correu atrás de seu sonho, já que era apaixonada por cinema: “queria ser atriz, mas naquela época não tinha atores negros, e muita gente ria de mim. Imagina, ela quer ser artista! Não tem artista preto!”. Uma frase que, por um instante, a desencorajava. Ainda bem que não a levou a sério e que, portanto, não entregaria os pontos.

Vai e volta

Ruth de Souza era carioca, mas morou no Rio até os 9 anos, quando a família se mudou para uma fazenda no interior de Minas Gerais. Quando seu pai morreu, ela e sua mãe regressaram ao Rio, fincando novo lar em uma vila de lavadeiras e jardineiras, situada em Copacabana.

Posteriormente, começou a surgir o interesse pelo teatro. De repente, Ruth soube por uma revista de que havia uma companhia cênica formada só por atores negros, chamada de Teatro Experimental do Negro. Era o seu primeiro passo rumo à quebra de preconceitos.

Firme e adiante

Com a mesma trupe, protagonizou certamente uma das maiores rupturas e audácias para os costumes em voga: no ano de 1945, foi a primeira atriz negra a pisar no tablado do Teatro Municipal do Rio de Janeiro, encenando a peça “O Imperador Jones”, de Eugene O'Neill.

A consequência disso foi que o gesto corajoso de Ruth abriu as portas para todos aqueles da mesma cor de sua pele trilharem o caminho da arte de representar. Faltava apenas uma inspiração e Ruth de Souza a encarnou.

A dama negra dos palcos foi ganhando espaço até ser notada por sua atuação no filme “Sinhá Moça” (1953). Neste caso, a glória era dupla, pois, além de sua cor, foi a primeira atriz brasileira indicada ao prêmio Leão de Ouro, do Festival de Cinema de Veneza, em 1954.

Um pouco antes, em 1948, ela recebeu um “empurrãozinho” do escritor baiano Jorge Amado, o qual recomendou Ruth para estrelar “Terra Violenta”, adaptação para o cinema da obra literária “Terras do Sem Fim”. A atriz prosseguia trabalhando: tanto é assim que fez parte do elenco fixo da famosa companhia cinematográfica Vera Cruz, em parte dos anos 50.

Ruth tinha desenvoltura também na Televisão, representando personagens em radionovelas e teleteatros de emissoras como Tupi, Record, Globo e Excelsior. Sua última aparição foi na minissérie global “Se Eu Fechar os Olhos Agora”, exibida no mês de abril deste ano.

Homenagens e mais homenagens

O Carnaval carioca de 2019 abriu alas para Ruth de Souza. É que a escola de samba Acadêmicos de Santa Cruz a adotou como enredo.

Ela confessou que ficou nervosa com a homenagem e se sentiu comovida com a lembrança.

Apesar de não ter filhos, Ruth deixa sobrinhos e uma legião de fãs e colegas saudosos de sua companhia. Uma delas foi a jornalista Maju Coutinho que escreveu nas redes sociais: “obrigada por ter aberto caminhos com seu talento. Foi um prazer te conhecer pessoalmente”.

O autor de novelas Walcyr Carrasco enalteceu o legado de Ruth e desejou-lhe paz. Outros artistas como Beth Goulart, Paulo Betti, Natália Timberg, Taís Araújo e Lázaro Ramos também renderam homenagens. Aliás, os dois últimos atores mencionados são negros e estavam visivelmente emocionados no velório da pioneira Ruth.