Parecia uma superprodução de Hollywood, mas era apenas uma tragédia pessoal. Na manhã de 26 de maio, uma cerimônia reuniu no cemitério Hollywood Forever, em Los Angeles, um impressionante elenco de celebridades da música e do cinema para o funeral de Chris Cornell. O vocalista do Soundgarden havia se enforcado em um banheiro de hotel depois de um show em Detroit, na madrugada do dia 17.

Para prestar a última homenagem a Cornell, estavam no Hollywood Forever os atores Brad Pitt, Christian Bale e James Franco, entre outros. Rockstars também não faltaram: James Hetfield e Lars Ulrich, do Metallica, Dave Grohl, do Foo Fighters, Dave Navarro e Perry Farrell, do Jane’s Addiction, e muitos outros.

Enterrado ao lado de Johnny Ramone

Antes de participarem da cremação, os convidados viram as cinzas de Chris Cornell serem sepultadas ao lado do seu ídolo e fundador dos Ramones, Johnny Ramone, e assistiram a uma performance emocionante: Chester Bennington, vocalista do Linkin Park, cantou ‘Hallelujah’, de Leonard Cohen. Em 20 de julho, menos de dois meses depois, Chester Bennington também foi encontrado morto, enforcado, em sua casa em Palo Alto, na Califórnia. A data escolhida teve uma mórbida simbologia: se estivesse vivo, naquele dia teria sido o aniversário de 53 anos de Chris Cornell.

O que leva rockstars milionários e bem sucedidos a se matar? O que faz ídolos de milhares de pessoas acabarem com suas vidas como se fosse artistas fracassados na rua da amargura?

Muita gente fez essa pergunta diante de duas mortes tão próximas e tão parecidas. Eu também fiz. Vi muita gente falando sobre depressão. Nessas tentativas de justificar o injustificável, também vi muitas associações com um passado comum de abuso de drogas e álcool. Não sou psicólogo, muito menos médico. Mas acredito que a resposta é muito mais complexa e envolve uma combinação de fatores que muita gente parece não querer não ver.

O mal do século

Vamos voltar um pouco na história da arte. No final do século 19, havia na Europa um sentimento de crise de valores que misturava melancolia, tédio e questões existencialistas. Esse movimento teve um reflexo na arte, mais precisamente em uma expressão criada pelo escritor francês François-René de Chateaubriand: mal du siècle, o ‘mal do século’.

Chateaubriand definiu o sentimento da época em uma frase genial: “As ciências explicam tudo para a inteligência e nada para o coração”.

Na época, esse sentimento era fruto de uma frustração com a então “vida moderna”, influenciada pela ascensão do racionalismo na Europa. Estava na moda dizer que havia uma razão para tudo, uma causa por trás de todos os fatos, uma explicação lógica para todo o comportamento humano. Descartes e sua turma defendiam que a razão era o centro de tudo. Pois bem: eles estavam errados. A racionalidade não se aplica a tudo, muito menos a todos os seres humanos de maneira homogênea.

A história se repete

De volta ao século 21, acredito que estamos vivendo um momento semelhante.

Como disse Karl Marx, a história se repete, na primeira vez como tragédia, na segunda como farsa. É possível, no entanto, que exista uma repetição que não é nem uma coisa nem outra, mas uma combinação das duas. Acredito que estamos, portanto, revivendo o mal do século. E que a tecnologia do século 21 é o racionalismo do século 19.

A tecnologia parece ter hoje a resposta para tudo. Precisa de um carro? Chama um Uber. Precisa de um livro? Entra na Amazon. Deseja encontrar um amor? Baixa o Tinder. Quer saber as respostas para perguntas que ainda nem foram formuladas? Dá um Google.

Êxtase e solidão

Só que na vida real as respostas não são tão fáceis assim. Não há um app para curar a saudade ou um iPhone que te diga quem você realmente é.

A racionalidade da tecnologia acaba apenas ampliando a ansiedade e afundando o abismo entre as relações imperfeitas. Quem tem tendência à depressão pode ter a vida transformada em pesadelo. Junte-se a esse caldeirão explosivo uma multidão em êxtase que se transforma na solidão de um quarto de hotel no minuto seguinte; uma rotina de viagens entediantes e repetitivas, repletas de presenças e ausências; uma facilidade para obter qualquer substância legal ou ilegal a um simples estalar dos dedos.

A ansiedade provocada pela tecnologia e pelo vazio das relações atinge hoje níveis alarmantes, de rockstars a adolescentes espinhudos escondidos em cantos escuros de corredores de escolas em todo o mundo.

'13 Reasons Why' é a prova disso. O tempo é um luxo; a comida é um lixo. A privacidade foi trocada por um sonho inatingível de que a popularidade traz a felicidade. O número de curtidas em nossas opiniões faz nossa alma salivar como cães de Pavlov.

Contágio perigoso

Na estranha relação entre Chris Cornell e Chester Bennington, temos algo a mais que também pode ter um paralelo naquele mesmo ultra-romantismo que resgatamos do século 19. O escritor alemão Goethe publicou uma obra sintomática dessa discussão entre razão e emoção que rolava na época: ‘Os Sofrimentos do Jovem Werther’. No livro, o personagem principal se mata com um tiro após uma rejeição amorosa. Na época, muitos jovens copiaram o gesto, tanto que o tal ‘mal do século’ na Alemanha é mais conhecido como o ‘Efeito Werther’.

E da mesma maneira que o jovem Werther inspirou dezenas de jovens europeus a se matar por amor, acredito que o suicídio desses roqueiros têm um efeito de ‘contágio’ sobre os colegas.

Cornell, mais velho e mais talentoso, era um ídolo para Bennington. Isso certamente acelerou a decisão do discípulo de homenagear o amigo com uma morte semelhante. Mas também tivemos, anos antes, o suicídio de Kurt Cobain, do Nirvana, amigo de Cornell e da mesma geração que ele. Layne Staley e Mike Starr, do Alice in Chains, morreram de overdose. Andrew Wood, do Mother Love Bone, também. Shannon Hoon, do Blind Melon, Scott Weiland, do Stone Temple Pilotos. Isso para ficar apenas na geração Grunge, entorpecida de heroína e desilusão.

Versão brasileira

No Brasil tivemos um caso parecido, quando o vocalista do Charlie Brown Jr., Chorão, morreu após uma overdose de cocaína que muitos julgaram ter componentes suicidas. Seis meses depois, seu companheiro de banda, o baixista Champignon, se matou com um tiro na boca – mesmo com a mulher grávida no quarto ao lado. Chorão tinha 43 anos quando morreu; Champignon tinha 35.

Depressão, ansiedade, niilismo. O século 21 também tem o seu mal. Lembra da árvore que não faz barulho quando cai por que não há ninguém por perto para ouvir esse barulho? Pois é. Um fato simplesmente não existe a menos que ele tenha sido compartilhado em alguma rede social. A tecnologia provoca uma ansiedade impossível de ser atendida, uma vez que o fluxo de informações publicadas é sempre maior do que o de informações consumidas, em qualquer lugar, por qualquer um.

O resto é silêncio

A ansiedade não é causada pela tecnologia em si, assim como a razão nunca foi inimiga da emoção. O que nos consome é o uso que fazemos de um elemento que é humano, demasiado humano. O que nos resta é ouvir as canções dessas almas atormentadas e torcer para que os que ainda estão vivos encontrem uma maneira de enganar a morte. E que o mal do século seja amortecido por algum remédio, alguma tecnologia, alguma inspiração que apareça para nos guiar por esse deserto de emoções. Ou simplesmente que, diante dos problemas, de tantos compromissos e obrigações, de tanta correria do dia a dia, a gente consiga se lembrar de que tudo que realmente precisamos é amor.