Quem daria uma chance para uma mineira que não tem nada a ver com o samba e com as religiões africanas? Afinal de contas, Minas Gerais é mais conhecida por sua devoção católica, não tendo nada a ver com oferendas e intimidade com o vocabulário vindo da África.

Assim, essa pergunta com aspecto de sombra foi transferida para uma cantora que, inicialmente, interpretava canções românticas e boleros.

Clara Nunes foi conquistando e abrindo trilhas para falar de coisas comuns ao povo e sua cultura. Tocar na ferida do racismo, do preconceito em relação às religiões de matriz africana e chegar mais perto das pessoas comuns, cantando samba e forró.

Exatos 40 anos de sua morte, sua lembrança não foi apagada pela ação implacável do tempo. Prova disso é que os veículos de comunicação rendem homenagens e põem informações sobre a carreira da “mineira guerreira, filha de Ogum com Iansã”.

Lá dos montes de Minas

Nasceu na cidade mineira de Caetanópolis e, desde pequena, começou a cantar nos coros de igreja. Concorreu num concurso de canto nessa pequena cidade, antes denominada Cedro. E faturou o primeiro lugar.

De origem humilde, Clara não teria oportunidade de brilhar se ficasse lá. Então, muda-se para Belo Horizonte. Na capital, era convidada para ir às sedes das rádios, chamando a atenção dos ouvintes. O sucesso culminou quando ganhou o título de melhor cantora de Minas Gerais.

Consciente de que podia mais, a mineira vai para o Rio de Janeiro, no intuito de estar entre as estrelas da Música. Sua vivência na Cidade Maravilhosa a fez perceber um mundo do qual nunca imaginaria estar: o mundo do samba e dos ritmos africanos.

Sua paixão foi tão grande que Clara Nunes mudou de religião, assumindo-se devota da umbanda e do candomblé.

Frequentava os terreiros e executava as tarefas que lhe incumbiam nessas áreas sagradas.

Útil ao agradável

Assim como o arroz e o feijão, Clara uniu o samba com a religião que abraçou, enaltecendo os orixás e as tradições do povo negro.

Silvia Brugger, conselheira do Instituto Clara Nunes, reconhece que a cantora rompeu as barreiras do preconceito ao usar a música como instrumento de expressão contra o preconceito em relação às religiões afro.

E não somente isso, Silvia destaca que a “filha de Angola, de Ketu e Nagô” foi a primeira mulher a vender acima de 100 mil cópias, marca considerada impressionante dentro do âmbito da indústria fonográfica. Seu disco lançado em 1974, por exemplo, saiu com a tiragem de 400 mil cópias. E, acrescente-se: sua carreira ganhou vários prêmios.

Sua atualidade é flagrante, constatada por artistas como Fabiana Cozza, a qual fez uma releitura de sucessos da “mineira guerreira”. Ela relata que “tinha muita intimidade com o repertório da Clara Nunes, porque acho que a Clara é um símbolo de brasilidade. Ela cantou muitos Brasis (...)”

Sua vida é narrada em uma peça de teatro. “Deixa Clarear” é um musical que já está em cartaz há 10 anos.

Interpretada pela atriz Clara Santhana, ela abre o jogo quanto à grande responsabilidade de encarnar a cantora mineira.

Segundo ela, vem “uma expectativa muito grande por parte do público. E as pessoas aceitam muito, elas conseguem ter esse encontro com a Clara Nunes (...). Há muita comoção. Porque dá para ver que as pessoas têm saudade dela”.

Adeus e revelação

A filha de Ogum com Iansã morreu aos 40 anos de idade. Teve uma parada cardíaca, provocada por choque anafilático, na mesa de cirurgia para a retirada de varizes. Foi um acontecimento inesperado naquele 2 de abril de 1983. Antes de vir a óbito, a cantora permaneceu em coma por 28 dias.

Em entrevista no último domingo (2) ao "Fantástico", da TV Globo, o médico que a operava, Antônio Viera de Melo, revelou que o monitoramento das condições do paciente não era o que se adota em tempos atuais.

“O anestesista, preocupado com a ventilação, verificou que ela estava com taquicardia ventricular no ritmo muito rápido e ela fibrilou, igual a uma parada cardíaca”, afirmou.

Sua escola de samba do coração era a Portela. Em sua homenagem, a rua de Madureira onde fica a sede da Portela foi batizada com o seu nome.

Já em Caetanópolis, há um memorial dedicado à filha ilustre. Lá estão os vestidos que usou nas capas dos discos que promovia.

Convidada para render homenagens à artista mineira, a cantora maranhense Alcione declarou que “sempre foi fã de Clara. Sabia que ela era uma pessoa que podia ser minha amiga porque ela tinha "o mesmo feeling, mesmo pensamento".