Já faz quase um ano que pessoas em todo o mundo lutam para derrotar a Covid-19, que já deixou mais de dois milhões de mortos em todo o mundo. Entre lockdowns, medidas de distanciamento social e protocolos de higiene, nossas vidas foram totalmente transformadas em 2020. Enquanto estamos presos, cientistas e virologistas lutam para encontrar soluções para superar esta crise global de saúde. A Blasting News conversou com a professora Astrid Vabret, chefe do departamento de virologia do Hospital da Universidade de Caen, na França.

No último dia 4 de janeiro, Vabret foi condecorada com a Legião de Honra do governo francês por seu compromisso contra o coronavírus. Desde o final da década de 1990 ela concentra sua pesquisa tanto no coronavírus animal quanto no humano.

Em entrevista exclusiva à Blasting News, ela afirma que não poderia ter imaginado “a resposta das sociedades a essa pandemia, em particular os lockdowns e suas consequências econômicas e sociais”. Vabret nos explica como o vírus se espalha, o que é uma variante e responde às dúvidas dos mais céticos sobre o vírus e a vacinação.

Blasting News: Como virologista especializada no estudo do coronavírus, você recebeu a Legião de Honra. Isso mostra uma nova onda de reconhecimento do governo francês, mas também do povo francês, para o setor de saúde e virologia?

Astrid Vabret: Não posso dizer que tenha sentido qualquer mudança além dessa condecoração do Ministério da Saúde. Em geral, quando se trata de saúde, as doenças infecciosas não são um tema de destaque. Falamos muito sobre cânceres e doenças ligadas ao envelhecimento, mas as doenças infecciosas são vistas como algo "sob controle".

É claro que vivemos um acontecimento excepcional onde o vírus está no centro das atenções, o que não acontecia desde a gripe espanhola, em 1918. Porém, a diferença é que estávamos no fim da guerra. Portanto, ao contrário hoje, a mídia não tinha permissão para falar sobre isso. Mais tarde, tivemos a pandemia do HIV na década de 1980, mas vamos dizer que não é a mesma violência.

Com a Covid, não há população de risco, ela afeta a todos. É por isso que este é um momento atípico.

Você tem trabalhado com coronavírus animal desde o final da década de 1990. Em 2006, você também escreveu uma tese sobre o coronavírus humano. Como seus estudos foram recebidos?

Quando comecei, os virologistas da minha geração trabalhavam muito com Aids e hepatite. As doenças respiratórias não estavam muito na moda e os coronavírus menos ainda. Fiz meus estudos médicos e científicos para me tornar professora de virologia. Enquanto estudava o tema da minha tese, trabalhei muito com virologistas veterinários, que estavam mais familiarizados com coronavírus. Minha pesquisa se concentrou no cruzamento da barreira das espécies e dos vírus que passam dos animais para os humanos, um assunto que não interessava a ninguém.

Fiquei, portanto, isolada neste tema de pesquisa, mesmo dentro da minha comunidade.

Você achou que o coronavírus nos levaria a uma crise global de saúde como esta?

Não, no início não sabíamos se esse surgimento teria sucesso. Só quando o vírus começou a chegar à Itália é que percebemos a gravidade da situação. Sabíamos muito bem que seria uma pandemia global. Sabíamos que seria muito difícil controlar, mas não podíamos imaginar a resposta das sociedades a essa pandemia, em particular os lockdowns e suas consequências econômicas e sociais. A porcentagem de casos graves também não pôde ser prevista.

Hoje existem variantes inglesas, brasileiras e sul-africanas da Covid-19. Como você explica o surgimento de variantes e como elas diferem do vírus original?

As variantes são específicas para a biologia dos vírus de RNA. Para se multiplicar, o vírus chega e assume uma célula, depois a usa para copiar seu código genético e tem todas as proteínas e enzimas feitas pela célula infectada, que também produz vírus infecciosos. A célula infectada é uma fábrica de vírus. É importante saber que quando você copia um genoma em cima de um código genético, há erros. Para DNA (como em humanos ou vírus de DNA), esses erros são monitorados e corrigidos, mas os vírus de RNA usam enzimas que são exclusivas do mundo do RNA. O problema é que essas enzimas não corrigem erros. Portanto, quando o vírus se multiplica, ele produz descendentes que não são idênticos a ele.

Os descendentes serão em sua maioria parecidos, mas terão diferenças: são variantes.

Após o surgimento dessas variantes, uma variante “dominante” vai se destacar: aquela que se multiplica melhor no ambiente onde se encontra. Ela irá passar de pessoa para pessoa muito rapidamente, já que é transmitida por via respiratória, algo que fazemos 24 horas por dia.

Que atitude deve ser tomada para controlar essas variantes?

O importante para essas variantes dominantes é ver se elas afetam a transmissão ou a patogenicidade, e isso é muito difícil de demonstrar. As pessoas sabem que os vírus sofrem mutação, mas o que não entendem totalmente é que isso é complexo e difícil de prever.

O que é importante, portanto, é a vigilância virológica.

Infelizmente, a prevenção é muito complicada, porque dinheiro público ou privado deve ser usado para prevenir um evento que pode nunca acontecer e que, se acontecer, deve ser controlado. Mas quando não há desastres, o dinheiro parece ter sido desperdiçado. Devemos, portanto, argumentar para receber financiamento para vigilância virológica.

A vacina do laboratório Pfizer é uma vacina de RNA mensageiro, um tipo de vacina que foi descoberta na década de 1990. Em que difere das vacinas que conhecemos?

O RNA mensageiro é uma tecnologia que já era conhecida, mas nunca havia chegado à maturação e implementação em humanos antes. É uma tecnologia sutil em que a vacina imita uma parte selecionada do material genético do vírus.

A vacina de RNA não interfere em nosso material genético, pois fica no compartimento citoplasmático da célula. A boa notícia é que, de acordo com os estudos mais recentes, a imunização e a proteção apresentam resultados muito bons. É sutil, mas não é complicado de fazer.

Muitas pessoas desconfiam da vacina por ela ter sido elaborada tão rapidamente. Como podemos explicar esse rápido desenvolvimento?

A vacina é a arma contra esse vírus. Esta é a melhor maneira de imunizar as populações rapidamente para garantir que a circulação do vírus seja controlada. Portanto, gostaria de perguntar a essas pessoas qual é o momento certo para elas. Se dissermos a elas dez anos, é muito tempo, mas um ano é muito pouco.

Quem diz que foi rápido demais tem medo de que seja mal feita, mas é um preconceito que não é racional.

A Pfizer, que produz sua vacina contra a Covid- 19 em parceria com a empresa alemã BioNTech, anunciou que as entregas de vacinas fora dos Estados Unidos vão desacelerar no final de janeiro e início de fevereiro. Você acha que isso pode ter impacto na propagação do vírus na Europa?

A Pfizer criou outros centros, mas o tempo para configurá-los atrasará o processo de produção. Cerca de 60% da população mundial deve ser vacinada para que haja uma desaceleração na propagação do vírus, então não será imediatamente, mas temos que começar em algum lugar. O governo francês compartilhou metas para o final de janeiro que foram cumpridas.

Depois, se você perguntar a um virologista como ele vacinaria, seria em “vacinódromos” [lugares dedicados exclusivamente à vacinação contra a Covid-19].

Qual seria a atitude a adotar enquanto aguardam os efeitos da vacina?

Com vírus, nunca tem fim, você pode é aprender a conviver com ele. Existe no início do seu surgimento um período que pode parecer longo, quando o vírus entra na população humana, gerando maior ou menor mortalidade, depois ele atinge um equilíbrio. Mas para atingir esse equilíbrio leva tempo, não há efeitos mágicos. Não sei o que vai ser decidido, mas a política de viver no limite com os casos de infecções naturais continuando a vacinar, ao mesmo tempo que permite a atividade econômica, daria esse equilíbrio.

A dificuldade é a duração do período difícil. Os benefícios econômicos e sociais são significativos, com inegável sofrimento psicológico de grande parte da população. No entanto, a limitação das liberdades ligada às restrições de lockdowns ou outras medidas de distanciamento deve ser acompanhada de paciência. É importante colocar essas restrições em perspectiva com o que acontece em termos de guerra ou desastre natural. A saúde mental é um ponto importante na luta contra esta pandemia.

Que meios não estão suficientemente desenvolvidos em sua opinião para que esta crise de saúde termine?

Cerca de 80% dos casos de Covid-19 não são muito graves e 15% são graves, portanto, vamos superar isso. É insuportável para nós, mas claramente não é um vírus que vai matar todos.

Em comparação com as pandemias que ocorreram antes, agora podemos combater o vírus e evitar a morte. O problema é que alguns países não desenvolveram estruturas de saúde. As pessoas precisam perceber isso e ver que pode ter um impacto sobre nós, mas também que pode ter um benefício para todos.

A crise de saúde foi influenciada pela desinformação, que desempenhou um papel importante na disseminação do vírus entre as pessoas que não seguiam as normas de saúde e medidas preventivas. Qual a atitude a adotar para convencer os mais céticos da existência do coronavírus?

É muito difícil lutar contra isso. É uma estrutura de pensamento bastante simplista e pode até ser paranoica. Além disso, as pessoas que duvidam são diferentes, são mais fáceis de convencer do que os conspiradores.

Frequentemente, a dúvida é vista como equivalente à inteligência, mas uma coisa importante é a coragem. Quando as pessoas dizem "eu sou a favor da vacina, mas prefiro esperar”, quanto tempo elas vão esperar? O coletivo não é algum tipo de entidade da qual falamos e da qual saímos quando nos convém. Para mim, é um ato de coragem dizer: “sim, tenho dúvidas porque não sei se haverá efeitos colaterais a longo prazo, mas existe um equilíbrio que é importante para a nossa sociedade, para os humanos, por isso tenho a coragem para fazer isso”. Se temos que convencer as pessoas que duvidam, é tendo esse tipo de coragem.