Doenças são divisores de águas para os quem são acometidos por elas. Para uns, significa um obstáculo, um sofrimento. Para outros, revela novos pontos de vista e novas perspectivas de vida. E para tantos outros, é a base necessária fornecida para teste e superação de dificuldades. Uma questão de vontade, de continuar seguindo adiante, apesar de tudo.
A terceira parte da frase cai bem para uma mulher de muita fibra, Jacky Hunt-Broersma, de 46 anos. Após ter parte da perna amputada, causada por um câncer, Jacky se questionava e se inquietava sobre o que poderia acontecer além do que passou.
Lá em 2002, Jacky foi diagnosticada com um tipo raro de câncer ósseo. Com 26 anos, ela não teve tempo de fazer algo por sua perna. Após duas semanas da identificação, os médicos acharam por bem cortar o membro inferior comprometido.
Desnorteada, ela não compreendia sua situação e confessou que sofria muito no começo. Seus sentimentos iam da raiva até a vergonha. Não gostava de mostrar sua prótese e amaldiçoava a todo instante o câncer que a vitimou.
Despertando para a corrida
Jacky mora atualmente no estado americano do Arizona, mas nasceu e passou parte de sua vida na África do Sul. Também viveu na Inglaterra e na Holanda. E foi neste último país que aconteceu a intervenção cirúrgica da perna.
“Foi uma montanha-russa. Tudo aconteceu muito rápido”, lembra a maratonista que pode ter seu nome perpetuado no Livro Guinness de Recordes.
Casada com um corredor, ela apoiava o marido nas provas esportivas de longa distância, mas nunca passou pela sua cabeça fazer algo parecido. Um dia, teve um lampejo.
Jacky comprou uma prótese especial para corridas de longa distância.
Treinou e, quando se sentiu madura para competir, se inscreveu para uma prova de 10 km. Na véspera desta prova, mudou sua inscrição para correr uma meia maratona. Foram 14 anos de convivência com a dor e de reflexões até esse primeiro feito.
Desde então, não parou mais e esqueceu de sua condição especial: “sou uma pessoa de tudo ou nada, então me joguei.
Adoro ultrapassar limites e ver até onde posso ir.”
Meta estabelecida no começo do ano
Ambiciosa, a atleta colocou uma meta desafiadora logo em 2022: correr 104 maratonas em 104 dias, visando à quebra do atual recorde registrado no Guinness Book, que é de 95 maratonas diárias. Detalhe: essas 95 corridas foram realizadas por uma pessoa sã.
Como se sabe, o calendário da prova mais tradicional do atletismo não oferece competições em todos os dias do ano. Então, o jeito foi correr trilhas próximas à casa de Jacky e até usar uma esteira dentro de sua casa. Sua última corrida de maratona foi concluída em 30/04.
Para se medir a disposição da corredora, ela correu o total de 4.400 km. A façanha aguarda o reconhecimento do Guinness, o qual comunicou que o feito de Jacky pode demorar de 12 a 15 semanas para ser reconhecido.
A atleta sul-africana documentou toda a saga nas redes sociais e atraiu simpatizantes e curiosos que, por sua vez, ajudaram Jacky a arrecadar US$ 88 mil para Amputee Blade Runners, uma associação sem fins lucrativos que proporciona próteses de corrida para pessoas com membros amputados.
Quem é ela?
Mãe de dois filhos, Jacky Hunt-Broersma trabalha como treinadora de resistência. Aos 46 anos, ela acha que as corridas têm características de um jogo mental e, consequentemente, exigem um esforço físico.
Sua preparação envolve cuidados com o corpo: ela precisa usar revestimentos e meias na prótese especial. Também são necessários massagens, alongamento e aplicação de gelo no fim da perna amputada todos os dias.
De forma surpreendente, ela não apresentou quaisquer lesões durante o cumprimento das 104 maratonas.
Experiente, ela confessa que gostaria de ter começado a correr mais cedo. Ela sente a diferença tanto no seu estado mental quanto na resistência física. “Isso me deu uma aceitação total de quem eu sou e que posso fazer coisas difíceis.”
Animada, seu próximo projeto é correr a Moab, um tipo de corrida bem exaustiva de 386 km no próximo mês de outubro. O Moab vai ocorrer no estado americano de Utah.
Se for pela torcida, Jacky tem tudo para figurar no Livro dos Recordes. Se os fiscais não concederem a certificação, Jacky é uma vitoriosa para milhares/milhões de pessoas. Uma referência que pode ser resumida assim: largou lá de trás do pelotão com uma limitação, juntou-se aos mais competitivos, passou por eles e figurou no pódio com muito louvor e merecimento. Isso é uma corrida de recuperação. Uma recuperação da vida que se resgata e se regenera.