Alguém já lhe contou algo sobre personagens fora da realidade e de suas histórias fantásticas? Essa é uma das frases que o folclore se baseia para preservar a cultura popular e as tradições que vão passando de geração em geração.
Se você supõe que esta matéria versa sobre o Dia das Bruxas, errou –embora também as bruxas habitem o imaginário popular. Mas, assim como essas mulheres de poderes mágicos, há outros mitos e lendas que fazem parte do misticismo e de pontos em comum verificados nas mais diversas civilizações que a humanidade fundou.
O dia 31 de outubro é mais conhecido pelo mote de “doces e travessuras”, principal ação feita por grupos de crianças que batem às portas de casas a fim de ganharem balas, caramelos, pirulitos e outras guloseimas.
Mas, justamente, surgindo como contraponto a essa cultura importada do Dia das Bruxas (vinda de países anglo-saxônicos), um ser peralta e habitante das matas quer dar “um chega pra lá” e ser reconhecido e celebrado: o nosso Saci-Pererê.
É oficial
A data não foi escolhida aleatoriamente. Sua criação ocorreu em 2003, por meio de uma iniciativa de projeto de lei. Isso mesmo. Algum parlamentar apresentou matéria nesse sentido. Tanto assim o é que em 2013 houve a aprovação da Lei Federal nº 2479, instituindo o último dia do mês de outubro como o Dia do Saci.
Mesmo que os mais jovens ou os mais incrédulos não considerem importante ou não creiam na figura de capuz vermelho e dotado de uma perna, é bem possível que, em alguma obra de Monteiro Lobato, tenham tomado contato com o Saci-Pererê.
É que o escritor paulista o menciona nos livros do “Sítio do Pica-Pau Amarelo”. Aliás, essa obra serviu de base para programas de televisão e produção de histórias em quadrinhos, colaborando para a propagação da lenda.
Comparando-se com as festividades do Halloween, as lembranças e celebrações em torno do Saci são parcas, mas vêm aumentando ultimamente com comemorações em diversas regiões do Brasil.
Levantando a ficha de informações
A lenda narra que o Saci-Pererê surgiu no Sul do país, como o resultado da mistura das culturas indígena, africana e europeia. Ele se apresenta como um garotinho negro ou piazinho que pula numa perna, já que a outra foi perdida numa batalha de capoeira. Usa um gorro vermelho e pode se movimentar como um redemoinho.
Por isso, é ágil e habilidoso.
Gosta da assustar e pregar peças nas pessoas, brinca de esconder objetos delas, além de fazer tranças e nós nas crinas e nos rabos dos cavalos. Ademais, ele pode azedar os alimentos. Vive nas matas e é um protetor da Natureza. Também gosta dos animais da fazenda.
Parece que a exclusividade não pertence ao Brasil, pois há relatos de seres parecidos em Portugal, onde lá se conhecem como “Fradinho da Mão Furada”.
Sério ou nem tanto?
De acordo com a professora Marli Mendes de Campos, essa data reforça a importância da valorização da cultura nacional e seu resgate de identidade. “Lembro da minha avó contando histórias de traquinagens do Saci. Ela acreditava mesmo, e eu também.”
Seu colega de profissão, Rodolfo Grande Neto, é outro que defende o debate e o modo como se relaciona com esses mitos, lendas e histórias.
O intuito é se aproximar do tema e agregar conhecimento.
Há pessoas que se dedicam a estudar esses seres sapecas – os chamados “saciólogos”, os quais possuem especialização no assunto, já que, segundo eles, existem derivações do mito principal, tais como o Saci-Taterê, o Saci do Poá e o Saci Sacerê.
O estudo é tão sério que, em Botucatu, cidade do interior paulista, fundou-se a Associação dos Criadores de Saci. Posteriormente, o jornalista Mouzar Benedito criou a Sociedade dos Observadores de Saci (a Sosaci). Embora iguais no objeto de estudo, Mouzar salienta que a instituição de Botucatu cria Sacis em gaiola, e ele prefere somente observá-los.
Ele emenda que “festejar nossa cultura dá a sensação de pertencimento a um povo (...) Basta promover uma forma de brincar longe de eletrônicos, como pular corda, corrida de saco, pular em uma perna só como o saci, ler livros.
Para não deixar morrer nossas tradições.”
Rivalidade internacional
Especialista em cultura brasileira, o professor Fernando Pereira não pensa em rivalidade entre o Saci-Pererê e o Dia das Bruxas.
Por ser um país miscigenado, o Brasil pode conviver com ambos, mas acha que os educadores e os pais devem lembrar a seus alunos/filhos sobre as manifestações folclóricas contidas no território nacional. Exemplos não faltam: curupira, iara e a cuca.
Seu raciocínio vai mais adiante porque “é imprescindível manter as crenças. Não se pode construir um futuro sem ter tido um passado.”
Como prova de nossa riqueza e mistura cultural, o mito do saci se popularizou para valer no século XVIII, quando se grafava a palavra com “Y”.
Sua origem vem do tupi “çaa cy”, o qual tem três significados: “olho mau”, “saltitante” ou “olho doente”.
O assunto desperta tanto interesse que a Sosaci possui membros do todo o Brasil e gente filiada de outros países como Argentina, Estados Unidos, Chile e Itália. A sede da associação fica em São Luiz do Paraitinga, interior de São Paulo, onde se relata que lá tem saci.
Conforme a sabedoria popular hispânica arremata: “no creo en las brujas, pero que las hay, hay”. Depende do nível de aceitação de cada um se concorda com parte, com a metade da frase ou com toda ela.