"Goiana encontrada morta no apartamento do ex nos Estados Unidos levou facadas no pescoço, diz a mãe", "Policia tentou abafar feminicídio em triângulo amoroso na Bahia, diz MP", "Caso de jovem morta por ex após publicar fotos de biquíni gera revolta". Notícias como estas estampam a mídia. O que assusta é que, muitas vezes, buscam-se motivos para justificar o ato criminoso e incriminar a vítima, sob a escusa de que mereciam como sentença a morte. O Brasil é um dos países mais misóginos do mundo. Somente no período do Natal de 2020, 6 mulheres foram mortas por seus parceiros no país.

É preciso debater esta questão.

A mulher como posse

Quando eu era pequena, minha avó costumava contar várias histórias, muitas delas de cunho educativo e moral. Uma delas, se passava entre os anos de 1940-1950 e narrava a história de sua prima, Sinforosa, que, segundo ela, era uma Mulher linda, com longos cabelos dourados, que chamava a atenção de todos. Ela havia se casado com um homem bom, mas muito ciumento.

Todos os dias, Sinforosa lavava seus cabelos e sentava-se na porta de sua casa, para secá-los ao vento. Isso atraia os olhares dos homens, que se aglomeravam para contemplá-la. Incomodado, seu marido a proibiu de sair. Para não contrariá-lo, a mulher passou a secar os cabelos na janela, mas seus admiradores não paravam de vir.

Insatisfeito, ele a proibiu de sair de casa e também de se debruçar na janela. Temerosa e restrita pelas imposições do marido, Sinforosa se recolheu, mas, seus cabelos eram muito compridos e volumosos, demoravam para secar. Como alternativa, ela pensou que, se pusesse somente os cabelos para fora da janela, o marido não se incomodaria.

Assim sendo, ela se sentou de costas para a janela, apenas com seus cabelos a mostra, embalados pelo vento. Isso parece ter encantado ainda mais os homens, que se agrupavam em frente a sua casa. Voltando do trabalho, o marido se depara com a cena e explode de ira e ciúme. Sem pensar, puxa Sinforosa pelos cabelos e quebra, num só golpe, o seu pescoço.

Ela morreu ali mesmo, sem chance de defesa. Nos braços do marido que a matou.

Minha avó sentia pena dele, tão dedicado, que não merecia esse sofrimento. Por sorte ele não foi preso, contava. O caso não era para ensinar sobre como se defender de homens como este. Pretendia doutrinar e disciplinar a futura esposa para ser obediente a seu marido.

Histórias como essa ficam incrustadas em nosso inconsciente e buscam justificar o crime sob escusas morais.

No Brasil, até pouco tempo atrás, não era nenhum absurdo um homem matar sua esposa caso a flagrasse em adultério, como tão bem narrava Jorge Amado em seus livros sobre os coronéis do cacau que se passava nos anos de 1920. O Brasil de hoje não é o mesmo de outrora, entretanto o controle do homem sobre a mulher ainda é uma realidade factual na memória social brasileira.

Por esta razão esse assunto é tão grave e urgente quanto delicado. A mulher como posse é algo que foi naturalizado. Mulheres foram criadas para obedecer e serem submissas aos seus maridos que, ainda hoje, quando não conseguem esse “direito” por bem, não se constrangem em conquistá-lo por mal e lhes tirar a vida.

Justificativa para o crime

Somente no período do Natal, foram registrados 6 casos de feminicídio no Brasil. Muitos desses crimes aconteceram na frente dos filhos do casal, o que gera um trauma profundo durante toda a vida desses indivíduos. Outra complexidade reside na impunidade dos criminosos, muitas vezes justificados pela sociedade, enquanto a vítima, tem seu caráter posto a prova, sem que possa se defender por estar morta.

Para ilustrar esta afirmativa, temos o caso da jovem de 26 anos, ocorrido no Rio de Janeiro, nesta terça-feira (4), morta pelo namorado por postar fotos de biquíni no twitter e não aceitar reatar a relação. O ex era traficante e, por esta razão, muitos argumentam que ela merecia esse destino. Após ser esquartejada, ele jogou o corpo na Baía de Guanabara.

Essa problemática afeta a sociedade como um todo. Ano passado foi publicado o artigo "OMS põe Brasil em posição de alerta: País lidera ranking de mulheres ansiosas e depressivas e a causa pode estar no machismo", que faz uma possível relação entre misoginia e depressão.

A impunidade e a morosidade também causam alarde. Somente no Estado da Bahia em 2020 foram cometidos cerca de 100 feminicídios. A maioria dos acusados está solta.

É preciso falar sobre feminicídio. Mulheres não são posses.