Mais do que um patógeno altamente letal, o coronavírus é um marco social. Como costuma acontecer após um grande incidente com efeitos globais, o mundo desatinou: desconhecimento, desinformação, desordem, desastre, teorias conspiratórias, tensões políticas, crises econômicas. Pandemia e pandemônio. Não é absurdo algum afirmar que o mundo era um antes do surto de Covid-19 e que já é outro agora, quando ainda perdura morbidamente entre nós. Que os efeitos desse fenômeno alcançariam até mesmo as relações trabalhistas e a cultura das empresas, isso poucos foram capazes de prever.
O home office é um marco da pandemia
A prática do home office, ou trabalho remoto, é uma das heranças que a pandemia deixará para o mundo. Não que não houvesse pessoas trabalhando a partir de suas casas antes disso, muito pelo contrário. Já em 1857 o conceito havia sido empregado por J. Edgar Thompson, industrial norte-americano que utilizou o sistema privado de telegrafia da empresa na qual trabalhava para controlar os equipamentos do laboratório. Na história recente, a possibilidade de trabalhar remotamente de maneira regular surge a partir a ampliação do uso de computadores pessoais e a popularização da internet, a partir da década de 1990.
Imediatamente antes da pandemia os números já não eram irrisórios.
Em 2020, estimativas indicavam que 17% dos trabalhadores norte-americanos exerciam suas funções profissionais remotamente pelo menos 5 dias por semana, percentual que subiu para 44% durante os períodos em se exigiu restrições mais severas.
Hoje, mais de um ano desde o início da pandemia, está claro que “trabalhar” nunca mais voltará a ser como era antes.
Há, inclusive, boas razões para acreditar que o home office em breve será incorporado à cultura organizacional moderna que tem sido adotada pelas organizações em âmbito global e que abrange valores como a preocupação com o nível de satisfação dos colaboradores e clientes, o ambiente descontraído, a extinção de modelos hierárquicos rígidos e a preocupação com questões sociais.
Esse “novo normal”, antes restrito aos ambientes das startups e das empresas voltadas exclusivamente para o nicho tecnológico e que progressivamente vinha ganhando espaços nas corporações tradicionais, acelerou em razão dos efeitos da pandemia.
Naturalmente, há benefícios. A diminuição de distrações e a liberdade para se auto-organizar conduzem ao aumento na produtividade; o fato de não ter de se deslocar à sede da empresa provoca economia de tempo e de dinheiro; a dispensabilidade da presença física das pessoas amplia a flexibilidade para que tanto o empregado quanto o empregador exerçam suas funções em seus próprios ritmos. Tudo isso resulta, espera-se, numa conveniente diminuição nos níveis mundiais de estresse.
Os problemas do home office
É mais ou menos isso que as pessoas pensam quando se fala sobre como é bom trabalhar remotamente. Contudo, o home office também tem seus contras. O ambiente doméstico, confortável e livre de pressões, é uma grande armadilha para a produtividade daqueles menos dotados na arte da autodisciplina. Os mais comunicativos também podem sofrer o impacto negativo, haja vista a ausência das conversas nos intervalos e as brincadeiras entre funcionários, insubstituíveis mecanismos aliviadores da pressão comum nos ambientes profissionais.
Esse verniz de “privilégio” vem, principalmente, do fato de que poucas são as profissões que admitem essa prática, em geral aquelas ligadas a atividades que podem ser desempenhadas por meio de computadores pessoais.
Zeladores, caminhoneiros, garis, motoristas de aplicativos, agricultores, caixas de supermercados, policiais, jardineiros, mecânicos, entregadores, marinheiros e médicos são apenas alguns dos ofícios que não admitem nem mesmo um modelo híbrido –e dificilmente admitirão um dia–, pois não podem acontecer sem que se ponha, concretamente, a “mão na massa”.
Para essas profissões, pouco ou nada mudará. Mas, em diversos outros setores econômicos, sobretudo no momento atual, em que a vacinação em massa já é a realidade em diversos países, uma pergunta muito pertinente tem sido feita: o que podemos esperar do home office após a pandemia?
Antes de tudo, a tendência atual, conforme pesquisa realizada pela ETR, é que o número de pessoas trabalhando permanentemente em trabalho remoto dobre ainda no decorrer de 2021, especialmente em razão das novas quarentenas, lockdowns e distanciamentos sociais auto-impostos.
Em entrevista ao site Busted Cubicle, o CEO e co-fundador da Remote, empresa que auxilia outras empresas a encontrar colaboradores ao redor do mundo, Job van der Voort, disse acreditar que no futuro “muitas empresas e organizações estarão operando remotamente pelo menos parte do expediente”.
“Eu acredito que chegará um momento em que o significado do trabalho remoto já não será assim tão claro. Você poderá trabalhar em um espaço de coworking ou a partir de um local de sua própria escolha. Você poderá trabalhar junto com os seus colegas ou talvez não. Será indiferente. Eu não acho que os escritórios deixarão de existir, mas eu também não penso que iremos trabalhar das 9h às 17h em um mesmo lugar como antigamente”, disse.
E diversos são os estudiosos, empresários e administradores públicos que compartilham desse pensamento. Mas há outros aspectos que precisam ser abordados. Ainda que haja uma impressão atual que aponte para o seu crescimento, é difícil prever quais serão os efeitos disso a longo prazo. Sobretudo porque, apesar da abundância de informações, há poucos estudos dedicados ao assunto.
Os empregadores estarão de acordo com esse novo regime? A produtividade dos trabalhadores permanecerá estável ao longo prazo? Como serão as novas leis que disciplinarão a prática? Quais serão os impactos econômicos?
Um ponto que merece atenção é que, segundo um artigo publicado ainda no ano de 2020 por três pesquisadoras do Fundo Monetário Internacional, o trabalho remoto não tem funcionado para os pobres e tampouco tem contribuído para a redução das desigualdades sociais.
Uma das características identificadas pelas pesquisadoras, por exemplo, é que existem profundas diferenças entre países, mesmo quando falamos de uma mesma profissão.
“É muito mais fácil trabalhar remotamente na Noruega e em Singapura do que na Turquia, Chile, México, Equador e Peru, simplesmente por que mais da metade das famílias na maioria dos países emergentes e em desenvolvimento sequer dispõe de computadores em casa”, enfatiza o estudo.
Do mesmo modo, trabalhadores sem diploma universitário, mulheres e autônomos figuram, segundo o estudo, entre as categorias mais vulneráveis e menos “beneficiadas” pela adoção do trabalho remoto. Soma-se a isso o fato de que maioria dos trabalhadores de baixa renda exercem suas profissões em setores ligados a atividades menos receptivas ao home office, como limpeza ou alimentação.
Tem-se, portanto, um grande desafio pela frente. Embora ainda não se possa afirmar com precisão que o home office irá se tornar a regra, não restam dúvidas de que a noção de “trabalho” foi atualizada. Assim, é de se esperar que em breve surgirão intensos –e extensos– diálogos entre trabalhadores, companhias privadas e governo com finalidade de solucionar as possíveis contradições que acompanharão esse processo que já se encontra significativamente avançado no mundo atual.