Normalmente as personalidades e celebridades são lembradas quando, a partir de seu nascimento ou morte, a contagem termina em múltiplos de cinco ou de dez.
Entretanto, neste caso, é muito mais do que válido abrir exceções para gente que não foi tão conhecida na vida e, postumamente, ganha espaço nos círculos profissionais e pessoais. É o mínimo do que se pode falar sobre Carolina Maria de Jesus.
Caso o leitor não se convença de quais seriam os motivos para homenageá-la, não tire os olhos e nem se distraia do que será escrito sobre essa Mulher – e negra, por sinal.
É hoje o dia
Carolina Maria de Jesus apagaria as velas de seu bolo de aniversário hoje, 14/03/2021, e caso estivesse viva, ela comemoraria 107 anos de idade. Um dia de meia alegria, pois, foi nessa mesma data que a Vereadora Marielle Franco morreu assassinada no Rio de Janeiro em 2018. Tanto uma quanto outra descendiam de negros. Carolina era neta de escravos.
Então pode-se supor que Carolina de Jesus pertencia às camadas baixas da sociedade? Sim, certamente. Inequivocamente, o mais revelador é que ela se tornou escritora e poetisa.
Além do mais, foi a primeira mulher negra a se consagrar com seu livro mais famoso “Quarto de Despejo”, lançado em 1960, com o apoio do jornalista Audálio Dantas.
Filha de pais analfabetos, a mineira veio para São Paulo após a morte de sua mãe.
Decidiu estudar e só conseguiu concluir até o segundo ano do ensino fundamental. O pouco de permanência nas carteiras e salas de aula foi o suficiente para adquirir o gosto por escrever e pelas letras.
“Quarto de Despejo” foi traduzido para 13 idiomas e ganhou fama internacional. Mesmo assim, Carolina não tinha vida fácil, pois sua principal renda vinha de sua atividade como catadora de materiais recicláveis e de faxinas em residências.
Persistente, Carolina escreveu outros três livros e não parou mais; a “escritora favelada” – morava na extinta Favela do Canindé, em São Paulo – relata suas privações e carências, questões sociais num período que a palavra “favela” não possuía a mesma força significativa dos tempos atuais. Naquela época, era apenas ficar à margem da sociedade.
Justamente, por isso, sua obra era considerada igualmente menor, sem valor literário ou chamativa do ponto de vista intelectual.
Virada
Estudos feitos por uma nova geração de pesquisadores têm virado o jogo a favor da “escritora moradora da favela”. Segundo eles, Carolina tinha uma autoconsciência e uma solidez estética presentes nas mais variadas formas que buscou para se exprimir. São narrativas, contos, poesias e romances registrados em mais de 5.000 páginas feitas à mão – a maioria desse precioso material continua inédita.
Pelo fato de vir e de ser uma voz da periferia e dos círculos sociais mais desfavorecidos, Carolina tornou-se uma inspiração para movimentos que reivindicaram visibilidade e representatividade na cultura e no cotidiano brasileiros.
Embora não tenha exercido nenhuma espécie de ativismo, Carolina tinha clareza de visão quando o assunto era a realidade nacional. Ela sentia na pele as mazelas, as dificuldades e o desprezo por morar em barraco.
Um exemplo de sua influência duradoura ao longo do tempo aconteceu durante a década de 1990: Carolina Maria de Jesus foi uma das bases para movimentos surgidos na periferia, os quais pleiteavam voz e participação maior na Literatura do Brasil. Assim nascia a Literatura Periférica.
Mês passado, a mulher negra Carolina chegou a uma das glórias supremas quando se pensa em livros e sua produção: a UFRJ concedeu-lhe o título de Doutora Honoris Causa.
Infelizmente, ela não teve oportunidade de ver tudo isso em vida, já que morreu aos 62 anos em 1977, na mesma São Paulo que lhe mostrou as adversidades, as cruezas e o alfabeto.
Texto especial em seu nascimento
Como uma maneira de prestar homenagem e não deixar de esquecê-la, o Instituto Cultural Itaú (ICI) publica hoje, 14/03/2021, uma reportagem inédita sobre os 107 anos da escritora.
O conteúdo também abordará a importância de Carolina Maria de Jesus para a literatura brasileira. Haverá depoimento e entrevista com o biógrafo Tom Farias. Foi ele que escreveu a obra “Farias em Carolina – Uma Biografia”, lançada em 2017.
Outra entrevista pode ser acessada na página do ICI com a professora Nágila Oliveira. Ela também é fundadora e editora da Revista África e Africanidades, um periódico na Internet que aborda e debate temas afro-brasileiros.
Exemplos como o de Carolina Maria de Jesus não mostram somente os sofrimentos advindos da pobreza ou de condições miseráveis. Isso não importa; tampouco importa o lugar. Quando se nasce com um talento, basta que a outra parte (no caso, o papel e a caneta) estejam dispostas a expressar tudo o que uma alma busca transmitir. Carolina Maria de Jesus tinha de sobra esse talento e sua vida gravitou no objetivo de transpor os gritos e sentimentos daqueles com quem conviveu. Na favela, diga-se de passagem.